Inicial > Circuito de 2017 > A Cidade Onde Envelheço

A Cidade Onde Envelheço

LCeT - Cidade

Ao longo de A Cidade Onde Envelheço, Marília Rocha vai se distanciando das possíveis expectativas mais comuns que um espectador carrega ao assistir a um filme. É difícil estabelecer se há elementos para categorizar o longa-metragem como drama ou qualquer outro gênero, já que a cineasta trata com considerável suavidade os momentos mais corriqueiros do dia a dia de suas duas protagonistas. Não é algo tão raro no cinema nacional (Corpo Elétrico também se fundamentou nesses pontos mortos e impasses da idade adulta), mas Rocha tece essa rotina numa dinâmica de leve afeto, empatia e cordialidade. Essa proposta é construída de tal maneira que potenciais crises domésticas são desaceleradas pelo véu da simpatia entre as mulheres e de genuína redescoberta de suas afinidades, num processo entrelaçado com o nosso olhar, de fora, para aquele desenrolar da amizade. Ademais, até os conflitos efetivos tardam a se desenhar na trama, ao que a já avançada conexão das personagens funciona para redirecionar apuros para novos desdobramentos afetivos entre as duas.

E nunca é demais valorizar a sensibilidade com a qual a cineasta e as atrizes desenvolvem as interações entre aquelas personalidades tão diferentes. Rocha constrói rimas sutis e belíssimas para explorar o que diferencia e o que aproxima as amigas; são detalhes como as cenas distintas em que Teresa (Elizabete Francisca Santos) e Francisca (Francisca Manuel) dançam, uma sozinha no meio do dia, a outra rodeada de colegas no fim do expediente; ou o estilo das roupas delas, cheias de indícios sobre suas experiências pessoais, como as cores que ressaltam a energia de Teresa e vão mudando de padrão ao longo da narrativa, ou os tons mais sorumbáticos, quebrados apenas vez ou outra pelo uniforme do trabalho de Francisca.

d 2017 a cidade

Nesse estudo sobre as vidas daquelas duas portuguesas vivendo em terras brasileiras – e ainda por cima em Belo Horizonte, estado sem mar que se opõe ao longo litoral lusitano -, há um jogo de espelhos que não se faz óbvio de início, mas tem raízes profundas no trabalho das intérpretes e sua compreensão das figuras que encarnam. Se, por um lado, ambas demonstram saudosismo pela terra natal, a relação de ambas com essa falta e com a vida no Brasil difere muito. Chega a tal ponto que a empolgação de turista que Teresa exibe desde o início – e parece ser tanto predisposição própria quanto reação ao calor do brasileiro – pode ser vista como estopim para a decisão que Francisca toma de partir: sua natureza mais reservada, menos calorosa (mas nunca fria) é posta em xeque quando comparada a outra muito mais exaltada, e evidencia que talvez Portugal seja um encaixe melhor para Francista, e o Brasil para Teresa. Embora muito disso dependa de diálogos para tomar forma, eles geralmente são muito felizes como expressão daquela espécie de incerteza existencial, mas não sem uma dose de experiência e sabedoria trôpega, da vida adulta. A recém-chegada, por sua vez, vê sua empolgação em algum nível retraída para uma realidade condizente, mas de forma que ainda permanece reconhecível como aquela viajante enérgica que se apresentou. Se sua trajetória se direciona para uma repetição do ciclo de Francisca ou para um caminho próprio mais bem aventurado no Brasil, é difícil dizer, mas o ponto de inflexão determinante para a personagem está lá.

Outro desafio que se desenrola no âmbito dos moldes mais esperados de cinema é o tema – ou os temas – que A Cidade Onde Envelheço aborda. Por algum tempo, não parece que o filme é sobre algo especificamente, nem que isto seja o objetivo de alguma busca particular, pré-existente da diretora-roteirista ou dos outros autores do texto (Thais Fujinaga e João Dumans). É evidente, porém, que essa casualidade dos tópicos vem de uma boa escrita, e não de um foco por demais estreito dos realizadores em seu par de criações ficcionais estimadas. Quando o filme trata do desterro, do pertencimento, da construção de identidade e das matizes infindáveis que separam a essência dos lusófonos europeus e americanos, é com uma noção impecável de como tudo isso se manifesta na rotina mais comezinha e se desdobra, naturalmente, do deslocamento de uma terra e cultura para outra, com exposição e conflitos mantidos ao mínimo para evitar respingos no naturalismo do roteiro.

d 2017 a cidade onde

Por fim, mesmo sendo verdade que Marília Rocha dirige e escreve com delicadeza e afeto ímpares, seria um engodo se bastar nessas características de uma feminilidade mais tradicional e deixar de mencionar a energia, a solidez e a vitalidade que ela erige, com imagens e sons, para contar sua história. Qualidades evidentes no suado, barulhento, erótico show de punk, ou na música que embala uma viagem pelas fachadas da capital mineira, ou no corte seco daquele último abraço de Francisca e Leandro (Paulo Nazareth) recortado pela janela do quarto. É na conversa entre pontos tão básicos do âmago humano, e entre propostas díspares de como fazer cinema, que A Cidade Onde Envelheço se impõe como uma realização tão soberba.

(A Cidade Onde Envelheço, Brasil/Portugal, 2016. Dir.: Marília Rocha. 99 min.)

  1. Nenhum comentário ainda.
  1. No trackbacks yet.

Deixe um comentário